A relação de confiança entre médico e paciente é um dos pilares do exercício da medicina: o paciente que, durante a anamnese ou ao longo do tratamento, esconde informações do médico por vergonha ou receio de divulgação pode prejudicar, até mesmo de forma irremediável, o correto diagnóstico e tratamento de eventual patologia. Por esse motivo, o Código de Ética Médica possui amplo regramento proibindo expressamente a divulgação de fatos de que o médico tenha conhecimento em razão do exercício de sua profissão.
Ainda que o sigilo médico seja regra, existem algumas situações excepcionais em que o profissional da saúde tem o dever legal de informar as autoridades públicas competentes dados que tem conhecimento a partir do exercício da medicina. Estas informações podem ser agrupadas em duas grandes categorias: 1) quando há doença de notificação compulsória; e 2) quando há a ocorrência de um crime de ação pública.
Em hipótese de ocorrência de crime, a legislação brasileira é esparsa, havendo várias leis que tratam o tema de maneira fragmentária. Em razão disso, muitas vezes o profissional da saúde não tem segurança sobre quando deve ou não divulgar dados, pois falta ao direito clareza e uniformidade sobre o tema. Mesmo assim, o médico que não comunica às autoridades competentes a ocorrência de um crime de ação pública comete a contravenção penal do art. 66 da Lei nº 3.688/1941, podendo ser penalizado com o pagamento de multa.
Uma gama de disposições legais exige que o médico revele fatos sujeitos à proteção (…) a determinados órgãos públicos. O fundamento para isso é que, nesses casos, o legislador entende que o interesse público é predominante em relação ao interesse do paciente em relação ao sigilo.
HILGENDORF, 2019.
O Estatuto da Criança e do Adolescente obriga a comunicação às autoridades competentes de casos havendo suspeita ou confirmação de maus tratos contra criança ou adolescente. O Ministério da Saúde orienta que tal notificação seja feita através do Sinan, com o encaminhamento de ficha específica. Nos termos do art. 13 da Lei nº 8.069/1990, deve também ser comunicado o Conselho Tutelar mais próximo.
Por sua vez, o art. 19 do Estatuto do Idoso estabelece que é objeto de notificação compulsória os casos de violência contra o idoso, que devem ser informados à autoridade sanitária, bem como à polícia ou Ministério Público, ou, ainda, ao Conselho Municipal, Estadual ou Nacional do Idoso. De forma idêntica, o art. 26 do Estatuto da Pessoa com Deficiência também obriga a notificação da autoridade sanitária e da polícia ou Ministério Público em casos suspeitos ou confirmados de violência contra pessoa com deficiência.
Ponto que tem gerado maior debate é a questão da notificação de violência contra a mulher. Desde o ano de 2004, é obrigatória a notificação da autoridade sanitária de casos envolvendo violência contra a mulher. Esta notificação se dava para fins estatísticos, não se configurando em denúncia para fins de iniciar qualquer procedimento criminal. Contudo, em 10 de março de 2020, passou a vigorar a Lei nº 13.931/2019, que obriga também a notificação da autoridade policial, no prazo máximo de 24h após o atendimento, de todos os casos suspeitos ou confirmados de violência contra a mulher. Desta forma, a desde março de 2020, o médico que toma ciência de violência contra a mulher deve, obrigatoriamente, notificar também a autoridade policial para que tome as providências que entender cabíveis. Isto inclui os casos de abortamento legal em decorrência de estupro, com procedimento detalhado pela Portaria nº 2.282/2020, do Ministério da Saúde.
A obrigação de notificação compulsória, contudo, conforme Resolução nº 1.605/2000, do Conselho Federal de Medicina, bem como do art. 89, do Código de Ética Médica, não autoriza a remessa de prontuário ou ficha de atendimento médico, devendo o médico tão somente informar a ocorrência do fato, preenchendo ficha de notificação individual disponibilizada pelo Ministério da Saúde. Os prontuários de atendimento somente podem ser encaminhados para autoridades públicas mediante expressa notificação judicial para tanto.
Por fim, cabe destacar que o médico somente é obrigado a informar a ocorrência de um crime quando a paciente for vítima do crime. Neste sentido, quando em razão de sua profissão descobrir que seu paciente é autor, que cometeu um crime, e que a quebra do sigilo profissional levaria à investigação criminal do fato e possível responsabilização do paciente, é vedado ao médico revelar o segredo que lhe foi confiado pelo paciente.